O FILHO ETERNO Critóvão Tezza



Depoimento ou Ficção

A estrutura narrativa do livro “O filho eterno”, do escritor Cristóvão Tezza, chamou a atenção e gerou divergências entre aqueles que consomem literatura: enquanto alguns classificam a obra como um romance (ficção), outros a tomam por mero depoimento.

Sabemos, pela voz do próprio autor, que o polêmico livro é sim autobiográfico. A trama é a história de Tezza que, assim como o personagem de seu livro, é pai de um garoto com síndrome de Down. Por se tratar, então, de uma narrativa cujas representações advêm de reais situações e de íntimas impressões confidenciadas pelo escritor, confundem uns o ‘fazer’ literário – romance (autobiográfico) – com o ‘prestar’ mero depoimento.

Para Mikhail Bakhtin, os gêneros secundários (o romance, por exemplo, que aqui nos interessa) são mais complexos que os primários (atentemos aos depoimentos ou relatos), mas durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies (BAKHITIN, 2000, p.281). A obra de Tezza é modelo do que nos fala Bakhtin. Trata-se de uma narrativa ficcional (narrado em terceira pessoa, com narrador onisciente, personagens complexos e reflexões estético-subjetivas dos fatos narrados) resultante da transmutação de testemunhos da vida ‘privada’ do autor.

Conceber “O filho eterno” como ficção, como romance, como obra distintamente literária, é, por fim, compreender a sutileza das propostas explicitadas por Ítalo Calvino em “Seis propostas para o novo milênio”: contemplar o próprio drama como se visto do exterior, e dissolvê-lo em melancolia irônica. Trata-se de [...] pegar o que é particular e transformá-lo em universal.


A Importância da Biografia

Outra questão para a qual o “O filho eterno” presta-se como profícuo exemplo, diz respeito à relevância da biografia do autor na compreensão de sua obra. Concordo com Bakhtin que, não desconsiderando a importância, quiçá a contribuição, da leitura de biografias para o aprofundamento do leitor, alerta que se faz necessário o entendimento dessa como leitura somatória, mas independente. Bakhtin ao denominar "erro metodológico" o fato de se confundir o autor-homem e o autor-criador, nos remete a uma discussão acerca do que é Literatura.

Antonio Candido diz que a literatura é a transfiguração do real, é nela que estão retratados os sentimentos humanos e as diversas formas de relação do homem com aquilo que sente. A literatura, podemos inferir, é produto humano, logo nela está às verdades de uma mesma condição humana e o literário possibilita ao homem, ao ver seus costumes retratados, uma reavaliação da postura que assume. Ler é criar consciência do que somos, é examinar o mundo em que vivemos para transformá-lo no mundo em que gostaríamos de viver. (CANDIDO).

A literatura, mesmo sendo produto da ficção, não pode ser compreendida sem sua essência – o homem e tudo o que dele é próprio. Mas não se faz necessário que se especifique um homem em particular para que se compreenda o texto literário. A literatura pega o que é particular e transforma em universal (CALVINO), sem preceder de explicações e particularidades do escritor para compreender o que ele escreve.

Reitero que não é necessário negar o valor que têm a biografia do autor, as suas visões do mundo, as suas crenças e valores. O que Bakhtin denuncia, e aqui corroboramos, é "o procedimento puramente factual”, ou seja, tomar a biografia dos escritores como ferramenta indispensável à compreensão e entendimento de suas narrativa. Não só pode-se confundir autor/personagem/narrador, como também se assegura à literatura um papel secundário: produto de relatos de vida privada.

Tezza, em entrevistas, esclarece a sua posição sobre a vida privada e a sua obra:

CPLP - Como foi a experiência de se expor em um romance tão "autobiográfico" como O Filho Eterno?

Tezza - Quando me decidi pela forma romanesca, foi escrever um romance como outro qualquer. Afinal, para quem não me conhece, o elemento ficcional é irrelevante; é uma informação extraliterária. Mas, num primeiro momento, pensei em escrever um depoimento ou mesmo um ensaio sobre a experiência de um pai com um filho especial. Felizmente não deu certo, e o romance tomou conta, o que me deu uma imensa liberdade.
(Fonte: http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/18/artigo143754-1.asp)

"Esse detalhe técnico foi muito importante para mim. Era absolutamente fundamental que eu me afastasse da experiência pessoal para transformá-la em literatura. Ao descobrir a terceira pessoa, percebi a chave da narrativa, o que me deu uma liberdade maravilhosa. Claro que eu poderia escrever em primeira pessoa "mantendo distância", digamos assim. Mas como a experiência era muito pessoal, seria bem mais difícil; eu correria o grande risco de transformar o texto em confissão, o que destruiria o romance. Mas não podia perder de vista a dimensão concreta daquele pai. Assim, ao mesmo tempo mantive algumas "pistas" pessoais espalhadas pelo livro, como para lembrar o narrador do lastro existencial do personagem, para lhe dar mais carne e consistência, para o narrador saber exatamente de quem ele estava falando. O personagem escreveu um livro chamado Trapo, que, por acaso, é o título de um antigo livro meu; o nome do seu filho é Felipe, que é o nome do meu filho, mas o próprio pai não tem nome; é alguém que ainda não encontrou o seu nome. Essa realidade dupla, que aparece como que num espelho meio oxidado - umas partes nítidas, outras escuras e difusas, outras ocultas, algumas escancaradas - é uma das chaves narrativas do livro. No processo de transformar biografia em ficção, criamos uma outra percepção da realidade, que é, enfim, a arma da literatura. Gostaria de me estender um pouco mais sobre essa terceira pessoa e a relação entre literatura e vida, ou biografia, que é uma coisa que está chamando bastante atenção da crítica. Sobre a fronteira entre uma coisa e outra está o fato de que a literatura recorta e escolhe apenas o que tem relevância à unidade temática proposta pela narrativa, que afinal tem um começo, um meio, um fim e um narrador que, em cada momento, tem a visão completa do conjunto. A responsabilidade do narrador diz respeito exclusivamente a essa estrutura romanesca, não aos "fatos" ou às "verdades". Assim, o romance tem uma intensidade dramática que, de fato, não existe na vida, que se dilui pelo tempo. Não vivemos 200 páginas; vivemos 50, 60, 70 anos a fio, um conjunto disparatado de fatos que não são "organizados" por alguém”.

Arquivo Cultura de Travesseiro
Chesterton e sua Ortodoxia - Destra Opinião
href="http://culturadetravesseiro.blogspot.com/2010/11/depressoes-mae-o-pai-e-o-filho.html">Depressões - Herta Müller

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