Eros e Psique - Apuleio



Excertos da versão alemã integral de A. Schaeffer, trad. por Zilda Hutchinson Schild



Em certa cidade, havia um rei e uma rainha que tinham três filhas dotadas de extraordinária beleza. Ainda que fossem muito belas, as mais velhas podiam ser celebradas satisfatoriamente pelos elogios dos homens. Mas não havia linguagem humana que pudesse descrever ou pintar a primorosa e majestosa formosura da filha caçula. Atraídos finalmente pelos boatos sobre essa inusitada beleza, muitos burgueses e estrangeiros ricos afluíram apressadamente à região: adoraram-na como se a moça fosse a própria Vênus, atordoados de admiração pelo fato de ela ser tão arrebatadoramente bela. Ao mesmo tempo, aproximavam da boca o dedo indicador da mão direita curvado sobre o polegar, com devotada adoração.


E logo espalhou-se pelas cidades vizinhas e por todas as regiões limítrofes a fama de que a deusa, nascida das profundezas muito azuis do mar, vestida com o orvalho das espumas da maré cheia, concedia a graça de sua divina presença por todos os lugares, andando no meio da multidão; dizia-se que, com certeza, os borrifos da espuma celeste haviam dado à luz um novo rebento, não nos mares mas em terra firme; nascera uma nova Afrodite repleta de florescência virginal.

Essa ilusão tornava-se a cada dia mais monstruosa; o boato, muitas vezes ampliado, já atravessara as ilhas próximas e vários países, chegando à maioria das províncias.

Logo inumeráveis mortais empreenderam longas viagens atravessando as terríveis correntezas marítimas rumo ao glorioso símbolo do século. Ninguém mais viajava a Pafo, a Cnido ou nem mesmo a Citer a fim de contemplar a deusa Vênus: os sacrifícios em sua honra foram adiados, os templos esquecidos, os bancos abandonados, as cerimônias negligenciadas; os quadros deixaram de ser emoldurados e os altares permaneceram vazios, recobertos de cinzas frias. Sob os traços humanos da jovem, venerava-se o poder imenso da deusa e, durante o seu passeio matinal, elogiava-se o nome de Vênus como se a moça fosse a deusa em pessoa; ofereciam-lhe sacrifícios e alimentos no intuito de obter graças; e as grandes multidões cobriam as vielas por onde ela iria passar de flores soltas e de ramalhetes.

A imoderada transferência de honrarias celestiais para o culto de uma mortal aguçou intensamente os sentidos da verdadeira deusa Vênus que, impaciente, balançando a cabeça de indignação, resmungou em voz baixa, dizendo a si mesma:

"Vê, Grande Mãe da Natureza, origem de todos os elementos; observa como tu, que és a alma de todo o universo, estás dividindo as honras da majestade com uma simples mortal e como o teu nome, nascido no céu, está sendo profanado pela imundície humana! Sinceramente, acaso terás de sofrer, vítima do desconhecimento geral que faz os homens venerarem essa moça que é teu retrato vivo? Acaso terá sido em vão que aquele pastor, em cuja justiça e lealdade Júpiter confiou, te preferisse a todas aquelas Grandes Deusas? (Páris) No entanto, seja lá quem for essa menina, não vai apoderar-se das honras que me são devidas: logo a farei arrepender-se de sua ilícita beleza!"

E, imediatamente, chamou seu filho, esse moleque alado e incrivelmente audacioso, de maus hábitos e que com completo e evidente desprezo pela disciplina, anda armado com chamas e dardos pelas casas alheias durante a noite, no intuito de desmanchar casamentos e que, impune, comete as mais vergonhosas ações, além de não fazer nada de bom. Embora por natureza ele já seja malcriado, Vênus o atiça ainda mais com palavras, levando-o até aquela cidade para apontar-lhe Psique - pois esse era o nome da moça - em pessoa, depois de lhe contar tudo sobre o confronto de belezas. Disse-lhe, ardente e borbulhante de indignação:

— Pelos laços do amor materno, pelas doces feridas do teu arco, pelas queimaduras eróticas de tuas chamas, vinga-me, mas que seja uma vingança perfeita. Enfrenta com galhardia essa indomável beldade; e uma única coisa faze com vontade: essa donzela terá de apaixonar-se perdidamente pelo mais horrendo dos homens, cujo destino será a perda da dignidade e da herança; deve perder inclusive a incolumidade do corpo, e descer tão baixo que em todo o mundo não encontre quem queira partilhar do seu sofrimento!

Depois de dizer isso, e de apertar longamente o filho ao coração cobrindo-o de beijos ávidos, ela dirigiu-se à praia da costa mais próxima. Pisando sobre a espuma da orla das ondas revoltas, com pés de solas rosadas, Vênus desceu até o bojo macio do mar; bastava manifestar algum desejo e logo o oceano obediente não tardava em cumpri-lo, como se a deusa já o tivesse formulado anteriormente; e eis que surgiam as filhas de Nereu, cantando em coro, e o áspero Portuno com suas cerradas barbas azuladas, e a pesada Salácia com os seios repletos de peixes, além do pequeno Palêmon, o condutor dos delfins. Logo vieram os bandos de tritões, que atravessam alegremente os mares; um deles soprou a concha, outro protegeu a deusa com um guarda-chuva de seda; outro ainda trouxe-lhe um espelho, para que Vênus pudesse nele se mirar; os outros nadaram como parelhas de cavalos sob sua carruagem. Foi acompanhada por tal séquito que Vênus partiu para o mar.

Enquanto isso, Psique não colhia nenhum fruto da glória da sua inusitada beleza. Todos a admiravam, todos a louvavam, mas ninguém, nem rei nem príncipe, nem mesmo um homem da plebe aproximava-se dela para pedi-la em casamento. Os homens admiravam de fato a sua aparência divina, mas com a admiração que se tem por um belo retrato. As duas irmãs mais velhas, cuja beleza não fora cantada por nenhum povo, há muito haviam sido dadas em casamento a príncipes estrangeiros. Psique, no entanto, lamenta sua solidão, sem marido e sem amor, fisicamente doente e com a alma dilacerada; ela odeia em si mesma a beleza que constitui o encantamento de nações inteiras. Devido a essa situação, o rei, infeliz por ver a filha tão triste, desconfiando do ódio e do rancor dos céus por causa da beleza da moça e temeroso da ira dos deuses, procura o antiquíssimo oráculo de Apolo de Mileto, ao qual faz suas súplicas e oferece sacrifícios: pede que tão poderosa divindade arranje um casamento para a princesa rejeitada. A resposta do deus mântico foi dada em forma de versos:

Leva, ó rei, tua filha para o rochedo mais alto do monte,
E a expõe suntuosamente ataviada para as núpcias mortais,
Não esperes para genro um homem de estirpe mortal,
Mas um monstro cruel e feroz, cercado por cobras;
Ele voa pelos ares e, viperino, não poupa ninguém.
Destrói tudo, pois sabe como fazê-lo, com ferro e fogo,
Faz tremer o próprio Júpiter e aterroriza os imortais,
Pois também eles estremecem de horror diante das trevas do Estige.

Assim que o outrora feliz rei ouviu o prognóstico, voltou lenta e tristemente para casa, contando à esposa as instruções da infeliz previsão. A casa real ficou de luto por vários dias: só se ouviam choros e lamentações.

Logo se aproximou o dia da execução do cruel oráculo. E iniciaram-se os preparativos para as núpcias de morte da mais infeliz das donzelas. A chama nupcial já tremulava débil nas tochas obstruídas por escura fuligem e cinzas negras; o som da flauta nupcial foi substituído pelos acordes pungentes, o hino alegre terminava num verdadeiro gemido de lamentação; a noiva enxugava as lágrimas no véu do vestido. Devido ao seu triste destino, toda a cidade a velava e, visto que o ânimo geral era de perturbação, foram decretadas férias judiciais.

Somente a necessidade de obedecer às ordens dos céus faz com que Psique se sacrifique, cumprindo o castigo que lhe fora imposto. Depois de se encerrarem as festividades das núpcias, Psique, desolada e triste, em prantos e devidamente ataviada com a indumentária fúnebre, teria de ser levada ao alto do rochedo para a sua união com o monstro. Conduzida pela multidão, Psique não é seguida por uma alegre procissão de núpcias, mas acompanhada pelo cortejo fúnebre de suas exéquias.

Aos pais, perturbados com a grande desgraça da filha, e hesitantes em executar o destino nefando, a própria Psique exorta com as seguintes palavras:

— Por que amargurais vossa velhice chorando sem parar? Por que aniquilais vossos espíritos, que é muito mais o meu, com esse pranto contínuo? Por que desfigurais vossos rostos, para mim tão nobres, com lágrimas inúteis? Por que destruís em vossos olhos a luz dos meus? Por que descabelais os cabelos grisalhos? Essas são as luminosas recompensas pela minha inusitada beleza. Tarde demais vos sentis atingidos pelo toque mortal da inveja pública que corrói. Quando nações e povos me tributaram honras divinas, e a uma só voz me consagraram como a nova Vênus, então deveríeis ter padecido, chorado e me lamentado como morta. Já sei que ficarei totalmente só, por terem me confundido com a deusa. Mas levai-me logo para o alto do rochedo como foi prognosticado. Tenho pressa, estou ansiosa para consumar logo essa infeliz união, tenho pressa de contemplar meu nobre esposo. Por que deveria mantê-lo à distância, por que não fugir da sua presença? Por que evitar aquele que nasceu para destruir todo o mundo?

Tendo dito isso, a virgem calou-se e misturou-se às pessoas do séquito com o passo muito mais enérgico. Foram até o alto do íngreme rochedo, onde abandonaram a jovem às núpcias de morte com o monstro. A tocha nupcial ficou lá, mas apagada a chama pelas lágrimas da moça. A multidão cabisbaixa preparou-se para voltar à cidade. E os pobres pais, acabrunhados pela desgraça, trancaram-se na escuridão de sua casa, pois já se aproximava a noite.

No entanto, Psique tremia de medo, sozinha no alto do rochedo; surpreendentemente, sentiu-se transportada pelo brando vento Zéfiro, que a levou docemente, agitando suas vestes diáfanas, inflando o seu fofo vestido. Por sobre os altos penhascos conduziu-a o vento e colocou-a suavemente sobre a relva macia do vale no sopé da montanha.

Nesse lugar adorável, em meio ao vale florido, deitada sobre a relva coberta de orvalho, Psique adormeceu de mansinho. Depois de descansar bastante de tantas emoções, recuperada pelo sono reparador, ela ergueu-se com o espírito muito mais tranquilo.

Logo viu um bosque de grossas árvores gigantescas; viu uma fonte de águas transparentes e brilhantes e, no âmago desse bosque, um palácio principesco, que não fora construído por mãos humanas, mas por artes divinas.

Qualquer um que nele entrasse, logo saberia tratar-se da morada de um deus, pois suas colunas de ouro suportavam o teto entalhado cuidadosamente em marfim e cedro; as paredes eram recobertas de relevos feitos em prata, formas de animais selvagens e uma espécie de rebanhos que pareciam saudar quem entrava no castelo. A criatura que esculpira esses animais devia ser maravilhosa; não, de fato devia ser um semideus, ou melhor, um verdadeiro deus! O próprio pavimento era confeccionado de mosaicos de pedras preciosas que formavam diversos desenhos de valor inestimável. Feliz de quem pudesse pisar sempre sobre esse chão. O resto do palácio, os salões enormes, tinham paredes de ouro maciço, que brilhavam com brilho próprio, de modo que mesmo que fosse noite ainda haveria claridade e, durante o dia, caso o sol não quisesse dar o ar de sua presença, tudo brilhava, os aposentos, o pórtico, até mesmo as bandeiras da porta. Os demais tesouros estavam à altura da casa, de modo que se tinha a impressão de que tão celestial morada não podia ser de outro que não o grande Júpiter, para que este recebesse suas visitas.

Atraída pela beleza do palácio, Psique aproximou-se mais e, com um pouco mais de confiança em si mesma, atravessou o limiar. Arrebatada pela mais deslumbrante das visões, examinou tudo e avistou do outro lado da casa um depósito, trabalhado com grande arte e repleto das maiores preciosidades. Não havia nada que faltasse ali. Sem mencionar a estranheza que tantas riquezas lhe causaram, mais admirável ainda era o fato de não haver correntes, nem tranca, nem ninguém que guardasse os tesouros desse lugar. Enquanto examinava tudo isso com a maior admiração, ouviu uma Voz, sem que ninguém estivesse visível, que lhe disse:

— Como, senhora, espantas-te diante de tantos tesouros? Pois eles te pertencem. Por isso, recupera-te do cansaço no leito armado em teus aposentos ou, se preferires, refresca-te com um banho. As vozes que tu ouves somos nós, tuas criadas, que te serviremos com dedicação; também providenciaremos tuas principescas refeições, pois não descuidaremos do teu corpo.

Psique sentiu-se feliz e revigorada pelas providências divinas oferecidas pelas vozes incorpóreas. Depois de um sono recuperador e de um bom banho, sentiu-se recobrada do cansaço; como visse perto dali uma mesa redonda posta para a refeição, não se fez de rogada e acercou-se dela com visível satisfação. Foram-lhe oferecidos néctares e vinhos, e diferentes iguarias sem que houvesse criadas visíveis, apenas um leve sopro. Não pôde ver ninguém, apenas as vozes sussurradas das servas. Depois da lauta refeição, entrou alguém que cantou acompanhado à cítara, mas nem cantor nem instrumento eram visíveis; então ouviu uma porção de vozes que, embora não pudesse ver ninguém, deliciaram seus ouvidos com um belo coral musical. Como já estivesse anoitecendo e a noite aconselhasse o descanso, Psique retirou-se para o quarto. Logo uma voz suave chegou-lhe aos ouvidos. Ela temia, completamente só, pela sua virgindade, e tremia de horror com receio do que a esperava, tanto mais por desconhecer-lhe a natureza. Por fim, chegou o misterioso consorte, que subiu ao leito e fez de Psique sua mulher, mas, antes do amanhecer, desapareceu apressadamente. Logo, nos aposentos nupciais, as "vozes" que estavam à disposição, cuidaram da recém-casada que acabara de perder sua virgindade. E com o passar do tempo, o que antes lhe parecia estranho, por força do hábito tornou-se um deleite, e as vozes alegravam sua solidão e a perplexidade que sentia.

Enquanto isso, os pais envelheciam de dor e de tanto se lamentar; e como os rumores desses acontecimentos logo se espalharam, tão logo souberam do fato, as irmãs mais velhas de Psique abandonaram seus lares, consternadas e preocupadas, para ir visitar os pais.

Nessa mesma noite, o esposo de Psique lhe disse - pois, com exceção da voz, ele só lhe era perceptível ao tato e aos ouvidos:

— Doce e adorável esposa, estás ameaçada por um triste destino e um perigo iminente, que na minha opinião deves evitar. Eis que já se aproximam tuas irmãs, perturbadas por te imaginarem morta. Procurando seguir teus passos, aproximam-se deste rochedo; ao ouvires um lamento, não respondas, ou melhor ainda, nem sequer olhes para lá, senão me causarás a mais terrível dor, e, para nós, a maior das desgraças.

Ela anuiu e prometeu agir segundo a vontade do marido; mas assim que ele desapareceu junto com a noite, a infeliz passou o dia inteiro a chorar e a se lamentar, repetindo a si mesma que agora de fato estava perdida, encerrada na mais bem-aventurada das prisões, mas privada do contato com o ambiente humano, sem nem mesmo poder levar ajuda às irmãs enlutadas, isto é, sem nem ao menos poder vê-las. Nem o banho, nem a refeição, nem mesmo qualquer outra distração lhe proporcionaram alívio e, em prantos, deitou-se para dormir. Sem demora, um tanto mais cedo do que de costume, o marido logo se deitou na cama e falou mais uma vez, abraçado à ainda chorosa Psique:

— Não me prometeste isso, minha esposa? Que mais posso eu, teu marido, esperar de ti? Nem de dia, nem de noite, nem mesmo enlaçada pelos meus abraços te deixas convencer? Faze então como quiseres, obedece à tua consciência que te causará a ruína. Só te lembrarás, contudo, da minha advertência quando, tarde demais, começares a te arrepender.

Em seguida, Psique cobriu-o de pedidos em meio às carícias e ameaçou morrer de dor. Conseguiu arrancar do marido a promessa de que ele atenderia a seus desejos, ou seja, rever as irmãs e consolá-las, reunindo-se a elas. Desta forma, ele acabou por concordar com as súplicas da recém-casada e permitiu-lhe também que presenteasse as irmãs com tanto ouro e joias quanto quisesse. Contudo, não cansou de a advertir repetidas vezes para que nunca se deixasse convencer por uma sugestão maldosa e que nunca respondesse quando lhe perguntassem sobre sua aparência. Advertiu-a para não destruir toda a felicidade deles com uma curiosidade sacrílega, pois então nunca mais desfrutaria de seus abraços. Psique agradece ao marido e lhe diz, já com alma nova:

— Antes morrer cem vezes do que perder teu doce amor. Onde estiveres, eu te amarei até a morte. Amo-te como amo a própria vida. Comparado a ti, o próprio Cupido nada seria! Mas cede também aos meus caprichos e ordena ao teu criado Zéfiro que traga minhas irmãs para cá, da mesma forma que trouxe a mim.

Cobrindo-o de beijos, Psique murmurou-lhe doces palavras de amor; e abraçando-o com seus membros flexíveis, ainda acrescentou:

— Meu esposo, doce como mel, alma da minha vida, vida da tua Psique!

A magia e o poder desses arrulhos apaixonados subjugaram o consorte que, mesmo contra a vontade, prometeu atender-lhe aos desejos; contudo, como se aproximasse a aurora, desapareceu por entre as mãos da esposa.

Mas já as irmãs, que haviam procurado o lugar no alto do rochedo em que haviam abandonado Psique, aproximando-se de olhos inchados de tanto chorar, batiam no peito lamuriando-se em tão alta voz, até que os rochedos e a montanha ecoaram suas lamúrias. Elas chamavam pelo nome de Psique; essas vozes lamurientas alcançaram o vale depois de descerem as íngremes encostas, atingindo os ouvidos de Psique, que trêmula, saiu do palácio dizendo:

— Por que vos amofinais em vão com tantas lágrimas? Estou aqui, não deveis lamentar-me! Parai com essa tristeza, e finalmente enxugai as lágrimas que vos correm das faces, pois logo poderão abraçar aquela que lastimais em tão altos brados!

Em seguida, chamou Zéfiro, ao qual lembrou as ordens do esposo, que este cumpriu sem hesitação, trazendo-lhe as irmãs incólumes com seu suave sopro. A princípio, o encontro foi da mais genuína alegria, por entre abraços e beijos. Às lágrimas de dor, seguiram-se as de regozijo.

— Entrai - disse Psique -, alegrai-vos por estar sob meu teto e por recuperar na minha presença as almas abatidas.

Depois de dizer-lhes isso, a inocente Psique foi abrindo para elas as portas do seu doce refúgio, o castelo dourado com a criadagem invisível da qual somente os ouvidos podiam captar as vozes. Permitiu que as irmãs se refrescassem com os mais deliciosos banhos e depois ofertou-lhes a mais perfeita refeição já preparada por mãos não humanas. A abundância de suas riquezas fez germinar-lhes no coração as sementes da inveja. Psique não desobedeceu às ordens do esposo e, apesar da insistência das irmãs, descreveu-o como um belo jovem de queixo recoberto por barba macia, cuja ausência se devia às suas constantes caçadas pelos bosques e montanhas. Para hão correr o risco de se trair durante a conversação, fez com que Zéfiro as levasse de volta ao rochedo, cumuladas de ouro e de joias. Agora, enquanto regressavam ao lar, já envenenadas pela inveja, ambas falavam ao mesmo tempo, presas de grande agitação, até que uma delas se manifestou:

— Ó Fortuna, impotente, cruel e injusta! Como te comprazes em nos dar destinos tão diferentes, a nós que nascemos dos mesmos pais? Nós, as filhas mais velhas, fomos dadas em casamento a energúmenos forasteiros, para sermos suas serviçais, tendo de abandonar o lar paterno e a pátria, passando a viver longe deles como proscritas! À irmã caçula, no entanto, fruto de uma fecundidade já esgotada, deste tantos tesouros e, para esposo, um deus, a ela que nem mesmo sabe como aproveitar tantas riquezas! Irmã, acaso viste quantos tesouros e joias estão esparramados pela casa, quantos mosaicos de pedras preciosas e ouro, destinados a serem calcados sob os pés? Como se tudo isso não bastasse, Psique ainda tem um belo jovem por esposo, se é que está dizendo a verdade, e não deve existir no mundo ninguém mais bem-aventurada do que ela! Graças à crescente atração e paixão, esse esposo divino acabará por transformá-la numa deusa. Casada com tal Hércules, já assume ares; tendo vozes por criadas, dando ordens ao próprio vento, essa mulher já sabe até onde pode chegar e já se comporta como se fosse uma deusa! No entanto, pobre de mim, me casaram com um homem que é mais velho que o meu pai; além de calvo como uma abóbora, é mais baixo do que um anão e frágil como um menino. Ainda por cima, é tão avarento que guarda tudo sob ferrolhos e trancas. A outra irmã logo argumentou:

— E eu, que tenho de suportar um marido gotoso, que vive abatido e já está alquebrado; nem demonstrar-me sua afeição ele pode, pois tenho de constantemente untar-lhe os dedos enrijecidos das mãos com pomadas e unguentos malcheirosos, envolvendo-os com nojentos paninhos gordurosos! Ao fazer essas ataduras, acabo por queimar minhas mãos e minha missão precípua não é a de uma esposa, é mais a de uma enfermeira.

— No teu caso, minha irmã — esta é a minha opinião — parece que suportas o teu destino com espirito paciente, ou melhor, servil; ao contrário, eu não aguento mais ver que a menos merecedora de todas tenha recebido tão glorioso destino. Lembras-te da arrogância com que nos tratou, da exibição que fez de seus tesouros, e de como, incomodada já por nossa presença, ordenou ao vento que nos trouxesse de volta, depois de nos presentear com algumas ninharias em face de tanta riqueza? Não sou uma mulher e prefiro morrer se não conseguir fazê-la perder seus tesouros! E se também tu estiveres de acordo, ambas tramaremos um plano para aniquilá-la. Basta ter visto o que vimos e nada disso devemos contar aos nossos pais, sem falar que nem sequer devemos mencionar que Psique está a salvo. Nem lhes mostraremos estes presentes e o povo não deve saber de tão auspiciosa notícia. O fato de conhecerem a riqueza de alguém não torna as pessoas mais felizes! E bom que Psique saiba que não somos suas serviçais, mas sim suas irmãs mais velhas. Agora voltemos aos nossos maridos a fim de rever nossos infelizes lares, que no entanto nos servem de abrigo; mas depois de pensarmos bastante, voltaremos para nos vingar com mais força do seu orgulho.

Logo as duas bruxas elaboraram um plano vil e, depois de ocultar todos os riquíssimos presentes que haviam recebido, renovaram suas lamentações, depois de desfigurar o rosto com lágrimas falsas e de emaranhar todo o cabelo. E assim que assustaram os pais, renovando-lhes o sofrimento cada vez mais insuportável, voltaram a toda pressa para suas casas, para traiçoeiramente prepararem a armadilha, um verdadeiro fratricídio, contra a inocente Psique.

Enquanto isso, nessa mesma noite, o esposo que ela não conhecia voltou a advertir a esposa:

— Não vês o perigo que te espreita de longe? Fortuna trama e se abaterá sobre ti, se não procederes com a máxima cautela. As lobas pérfidas se esforçam por armar-te uma cilada, cuja pior armadilha é persuadir-te a contemplar o meu rosto. Já te adverti inúmeras vezes de que nunca mais o verás se o contemplares uma única vez. Portanto, quando essas bruxas vierem com suas almas desejosas de vingança — e sei que virão —, não converses com elas, ou se a tua inata bondade e a delicadeza do teu espírito não permitir isso, ao menos faças ouvidos moucos ao que te disserem sobre mim, e não respondas a qualquer das alusões que te fizerem. Pois dentro em breve teremos um filho. Embora ainda sejas uma menina, darás à luz uma criança. Se guardares nosso segredo, ela será um deus, mas se o profanares, será tão-somente um mero mortal.

Psique exultou com a notícia de ter um filho divino e bateu palmas de contentamento para expressar sua alegria e regozijou-se com a dignidade de poder vir a ser chamada de mãe. Amedrontada, ela contava os dias e as luas novas que se escoavam rápidos e admirava-se com o fato de o princípio de uma vida poder crescer inconsciente em seu ventre arredondado, a partir de um minúsculo ponto.

Aquelas bruxas, no entanto, as mais horrendas fúrias, já se aproximavam a toda a pressa, destilando veneno. Então o marido de Psique, mais uma vez e, dessa feita, mais incisivo, advertiu-a:

— O dia se aproxima da desgraça mais terrível, as inimigas que pertencem ao teu mesmo sexo, com a vingança no sangue, já pegaram em armas e se puseram a caminho, visto que já planejaram sua carnificina e fizeram soar suas trombetas de guerra; seus punhais desembainhados já estão perto da tua garganta! Que pena, minha doce Psique, que perigos terríveis nos ameaçam! Tem piedade de ti e do nosso filhinho e detém com teu comportamento sagrado a má influência que se aproxima da nossa casa. Salva-nos, a ti, a mim e ao teu filhinho da destruição total! Essas mulheres assassinas, a quem não deves chamar mais de irmãs, pois os laços de sangue foram desfeitos pelo ódio e esmagados ao chão, pisados pelos seus pés: não as ouças, deixa-as uivar no cume do rochedo, como as sereias com suas vozes fúnebres e, sobretudo, nem sequer olhes para lá!

Psique derrama novas lágrimas e pede com voz trêmula:

— Recentemente, tiveste uma prova da minha lealdade e viste como pude ser parcimoniosa com minhas palavras: não será agora que farei menos para manter a firmeza dos meus sentidos. Portanto, dá ordens ao Zéfiro para que ele te obedeça e permite que eu ao menos veja o rosto de minhas irmãs. Por estes teus cabelos sedosos que sinto roçar por todo o corpo, pela tua pele delicada e macia semelhante à das minhas faces, por esse peito ardente de amor do qual não conheço a aparência, por essa criancinha na qual ao menos verei tua imagem, permite, por minhas súplicas comovidas pela tristeza, permite que eu goze dos abraços de minhas irmãs e reanima a alma da tua Psique com nova alegria! Não mais procurarei ver teu rosto e nem mesmo a escuridão da noite será um obstáculo à minha felicidade, pois tenho-te em meus braços, ó luz da minha vida!

Comovido pelo tom acariciante dessas palavras, o esposo enxuga as lágrimas da sua Psique com os cabelos, e visto estar perdidamente apaixonado por ela, curva-se de novo aos seus caprichos. Mas eis que é chegada a hora de ele afastar-se, pois já raia a aurora de um novo dia!

O par de conspiradoras, no entanto, sem sequer visitar os pais, dirige-se logo ao alto do rochedo, tão grande era sua pressa em executar o sórdido plano. Tão logo chegaram, nem mesmo esperaram por Zéfiro, lançando-se temerariamente no abismo. A contragosto, pois lembrou-se das ordens do seu deus, o vento brando as acolheu no colo e depositou-as no solo. Elas dirigiram-se logo ao castelo, sem hesitações, abraçando a presa inocente com fingida alegria, con-gratulando-se com ela pela sua gravidez, no intuito de eliminar qualquer suspeita. Em seguida, passaram logo às perguntas costumeiras, com voz melíflua:

— Psique, tu não és mais uma menina como antes, pois de certo modo já és mãe! Que tão grande tesouro trazes em teu ventre! Com que alegria alegrarás a nossa casa! E como serás feliz, por poder criar tão linda criança. Se ela corresponder à beleza dos pais, tu darás à luz um verdadeiro Cupido!

Assim, com fingida simpatia e cínica preocupação, já conseguem comover a alma pura da irmã.

Esta as aconselha a descansar depois de tão cansativa viagem, pedindo que se refresquem com os gostosos vapores do banho. Em seguida, serve-lhes uma lauta refeição no belíssimo aposento destinado a essa finalidade, ofertando-lhes as mais deliciosas iguarias, inclusive carne enrolada. Ordena que a cítara entoe lindas canções, à flauta pede que sopre doces sons, música celestial que se completa com um coro de vozes. As melodias enternecem os sentidos das ouvintes, embora nenhuma presença humana seja visível. Nem mesmo assim, a perfídia das vingativas mulheres se abranda, nem mesmo essas melodias doces como mel as enternecem Ao contrário, logo vieram as inevitáveis perguntas sobre o marido da irmã: quem ele era, o que fazia e a que linhagem pertencia. Inocente, Psique esquecida do que dissera da última vez, se contradiz, respondendo que o esposo era um riquíssimo comerciante de meia-idade, cujo cabelo grisalho já começava a escassear. E depois dessa inocente mentira, imediatamente as entregou ao costumeiro veículo alado, Zéfiro, depois de cobri-las novamente de régios presentes.

Mas dessa vez, assim que foram erguidas pelo brando sopro do vento até o cume do rochedo, elas confabularam, durante o caminho para casa:

— O que dizes, minha irmã, sobre as monstruosas mentiras dessa bruxa? Da outra vez, o marido era um jovem lindíssimo cuja barba era macia como um floco de lã; agora ele é um velho,.cujo cabelo brilha com a cor de prata da meia-idade. Quem será este, que em tão breve intervalo de tempo transformou-se num homem idoso? Ou essa mulherzinha danada está mentindo, ou ela simplesmente ignora o aspecto do marido. Seja qual for a verdade, temos de dar um jeito de destruir sua prosperidade. Se ela não conhece o seu homem, com certeza casou-se com um deus e traz em seu ventre o seu germe, ao qual dará à luz! Decididamente: se ela de fato for a mãe de um rebento divino - enforco-me com uma corda cheia de nós! Portanto, tratemos de voltar à casa de nossos pais e mais tarde começaremos a inventar as fábulas que lhe contaremos em retribuição às mentiras que nos contou.

Perturbadas, mal cumprimentaram os pais, passando além disso a noite em claro. E, já pela manhã, estavam novamente no palácio de Psique, transportadas como sempre sem nenhum perigo pelo vento brando; e com lágrimas de fingida preocupação, que conseguiram através do expediente de esfregar com força as pálpebras, cumprimentaram a irmã, lançando mão do seguinte ardil:

— Estás sentada aqui em meio a tanta felicidade, sem conhecer a tão grande desgraça e o perigo que te ameaçam. Nós, entretanto, que nos preocupamos contigo e com os teus assuntos, sentimo-nos mal diante do teu infortúnio. Soubemos a verdade, e por sermos solidárias com a tua dor, não a podemos ocultar de ti: quem se deita a teu lado à noite na cama não é um homem, mas uma serpente enroscada em mil anéis, com as fauces túrgidas de peçonha, a boca larga como um abismo. Lembra-te agora do oráculo de Apolo, que te predestinou a uma união com um monstro. E vários camponeses e caçadores que andam por aí pela região, afirmam que a têm visto à noitinha, quando atravessa o rio próximo em direção ao palácio. Não haverá de demorar muito, para que ela te devore e também à criança que trazes no ventre; basta engordares um pouco mais. Só te resta tomar uma decisão: queres aceitar nossa ajuda e morar conosco, libertando-te deste perigo, ou preferes ser enterrada nas entranhas dessa besta selvagem? Quando, porém, te sentires solitária, nesse rico país de vozes incorpóreas, ou quando não suportares mais a companhia conjugal desse amor misterioso e os abraços da víbora peçonhenta que te faz companhia à noite, não te esqueças que nós, tuas leais irmãs, te avisamos do perigo.

Transtornada por essas palavras do mais puro horror, Psique perde a consciência e acaba por expulsar da memória as advertências do esposo e as promessas que lhe fez e cai nas profundezas da sua infelicidade; e, pálida como um cadáver e com palavras entrecortadas pela emoção, acaba por confessar às irmãs:

— Na verdade, minhas queridas, fizestes o que era certo vindo me advertir em nome de um amor sincero e, ao que parece, quem disse o que viu também não mentiu. Pois é verdade que nunca vi o rosto do meu esposo e também não sei a que linhagem pertence; apenas ouço a sua voz noturna, e me entrego a um esposo cuja estatura desconheço e que se desvanece pela manhã como se fosse ar; acho que tendes razão ao dizer que se trata de um monstro. Ele também receia que eu veja os seus traços e me ameaça com uma grande desgraça se tiver a curiosidade de contemplar-lhe as feições. E se puderdes trazer-me a ajuda necessária, suplico-vos que me protejais agora. Caso contrário, mais tarde tereis a lamentar o ter negligenciado o préstimo de uma boa ação.

Tão logo perceberam as pérfidas irmãs que haviam tocado o coração inocente da irmã, já lhe dão sugestões, transmitindo-lhe planos terríveis. Uma delas disse afinal:

— Visto que ainda funciona o vínculo de sangue da nossa origem comum, visto que o que pretendemos é mantê-la imune ao menor perigo, vamos mostrar-te o caminho, o único que pode levar-te à viagem da salvação, revelando-te nosso plano há muito arquitetado. Deves preparar um punhal de ponta bem afiada que caiba na palma da tua mão, e deves ocultá-lo ao lado da cama em que costumas dormir; e enche um candeeiro adequado de óleo para que a luz brilhe com clareza, mas o escondas sob a proteção de uma redoma opaca, porém, cuida de guardar o mais absoluto segredo sobre teus preparativos. Quando então a imunda serpente subir como de costume ao leito, e já tiver se estendido e passado do sono leve para o profundo, esse será o momento propício em que terás de deixar silenciosamente o leito, descalça, para que não se ouçam os teus passos leves; deves descobrir o candeeiro iluminando profusamente o rosto do monstro; aproveita para finalizar teu ato magnífico cortando decididamente, de um só golpe de punhal, que deverás ter na mão direita, o anel que fica entre o pescoço e a cabeça da serpente. Nossa ajuda não te faltará — estaremos a teu lado até que executes o monstro—e depois que tivermos juntas levado todas as riquezas deste lugar, nós te casaremos com um homem de verdade.

Embora tivessem prometido ficar a seu lado, quando viram que suas palavras inflamadas já haviam surtido efeito no apaixonado coração da irmã, elas se apressaram em sair dali, pois temiam grandes desgraças para si mesmas. E com a costumeira ajuda do vento alado voltaram ao cume do penhasco e, com a maior das pressas, entraram logo em seus navios, empreendendo rapidamente a viagem para casa.

Assim que ficou sozinha, Psique, transtornada e agitada, inquieta-se apanhada nas correntezas do sofrimento que a transporta de um lado para outro como se fosse um mar; embora resolvida a perpetrar o crime, ela subitamente hesita, sem poder resolver-se, arrastada por pensamentos contraditórios que aumentam a sua indecisão, impulsionada pelos vários efeitos que a infelicidade parece lhe causar. Ela se decide, depois adia, em seguida torna a encorajar-se — desconfia das irmãs — encoleriza-se com o esposo. O certo é que num mesmo corpo odeia o monstro e ama.o marido. Contudo, faz seus preparativos quando a noite se aproxima, preparando com demasiada pressa o necessário para perpetrar seu nefando crime. A noite chegou e, depois de entregar-se com ela às doces lutas do amor, o marido logo mergulhou em sono profundo. No momento em que geralmente Psique ficava inerte de corpo e alma, ela consegue dessa vez reunir suas forças, segurando o punhal numa das mãos e na outra o candeeiro: ela afirma o seu sexo através da sua ousadia. Mas, assim que aproximou de leve a luz do rosto do marido, eis que se revela o grande segredo: ela avista a mais bela e delicada de todas as feras, Eros, o deus do amor, ali deitado, o mais belo dos deuses. Até a chama do candeeiro estremeceu, derramando mais luz diante dessa visão, e o punhal arrependeu-se de ter uma ponta tão aguçada. Psique, ao contrário, embevecida pelo que via, com a alma aniquilada, trêmula e pálida, cai de joelhos e procura enterrar o punhal no próprio seio. Teria de fato levado a cabo seu intento, caso o punhal, por medo do castigo de semelhante crime, não se lhe tivesse resvalado da mão. Esgotada, livre da ameaça que a oprimia, Psique observou outra vez a beleza dos traços divinos e isso reavivou-lhe o espírito. Ela viu o cabelo brilhante e farto da cabeça dourada que recendia a ambrosia, viu os ombros brancos como leite, as faces rosadas emolduradas pelos cachos de cabelo, alguns deles caídos para a frente, os outros para trás, com um brilho que ofuscava até mesmo a luz trêmula do candeeiro; nas asas brancas como neve, nas costas rosadas do deus alado, embora não houvesse a mais leve brisa, estremeciam as delicadas penas com inquietação; Vênus nunca precisaria arrepender-se de ter dado à luz um corpo tão macio e brilhante.

Ao pé da cama estavam a aljava e as flechas, armas do deus do amor. Como Psique, insaciável e, além de tudo, bastante curiosa, também as examinasse e tocasse, acabou por pegar uma das flechas da aljava para testar sua ponta com o polegar, vindo a ferir-se ao tocá-la com um pouco mais de força dos dedos trêmulos, chegando mesmo a cair deles algumas gotinhas de sangue. Foi assim que, inadvertidamente, inconsciente do que fazia e de livre vontade, Psique apaixonou-se eternamente pelo próprio Amor; e agora, mais do que nunca ardente de paixão, ela se inclina sobre ele e começa a beijá-lo com lascívia embora com medo de acordá-lo. Contudo, excitada com a descoberta de tão inestimável tesouro e com os sentidos embriagados de paixão, esqueceu-se do candeeiro. Este, por maldade ou talvez corroído pela inveja por Psique poder tocar e ao mesmo tempo beijar aquele corpo maravilhoso, curvou-se demais e deixou uma gota de óleo fervente cair no ombro do deus adormecido. Ah! candeeiro temerário e insolente, péssimo serviçal do Amor, roubaste do deus todo o ardor e, ainda pior, queimaste o próprio senhor do fogo — o que quiseste fazer foi apoderar-se também da visão que ele oferecia nessa noite por algum tempo mais. Espera que ele te encontre! Mas assim Eros despertou do seu sono com a dor da queimadura, e ao ver desvendado seu segredo, levantou vôo no mesmo instante sem dizer uma única palavra, afastando-se depressa da esposa, que tentou detê-lo seguindo-o através das nuvens, agarrando-sé com ambas as mãos à sua perna direita. Contudo, exausta, Psique caiu ao solo.

O bem-amado deus, lá das alturas, não abandonou a amada, voando até a ponta de um cipreste, de onde, comovido, proferiu as seguintes palavras, destinadas à Psique:

— Na verdade, minha ingênua Psique, sem seguir as prescrições da minha mãe Vênus, que me ordenou que te acorrentasse a uma união com o mais pavoroso dos monstros e que te fizesse gozar das paixões mais inferiores de um casamento, preferi aproximar-me de ti como teu amado. Fiz isso por pura leviandade, pois fui atingido pela minha própria flecha e te tornei minha esposa, de tal forma — pensa nisso — que te pareci ser um monstro a quem pretendias cortar a cabeça com um punhal, a mim, teu amante que te contempla com estes olhos! Quantas vezes não te adverti acerca do perigo iminente, quantas vezes não te repreendi com delicadeza! No entanto, aquelas tuas ilustres conselheiras logo receberão o castigo que merecem por suas pérfidas lições; o teu castigo, Psique, no entanto, será a minha ausência.

E, tendo dito isto, Eros subiu às alturas celestiais com um rápido adejar de asas.

Psique, todavia, deitada ao solo, ainda tentou ver as asas do marido, lamentando-se em altas vozes e dizendo do desgosto e arrependimento da sua alma. Mas tão logo o ruído do adejar de asas desapareceu do aposento nupcial, fora de si, desejou morrer e lançou-se de cabeça nas águas de um rio próximo. No entanto, as próprias águas mansas do rio — para homenagear o deus, bem como por medo, visto que ele sabia até mesmo como incendiá-las com seu fogo — repuseram-na num socalco de terra seca e florida da margem do rio.

Por acaso, Pã, o deus da terra, estava tranquilamente sentado numa ribanceira próxima, com Eco nos braços, ensinando à deusa das montanhas como fazer ecoar uma série de diversos tons. Por perto pastavam suas cabras, revolvendo a grama tenra das margens do rio. Pã, ele mesmo tão parecido com uma cabra, chamou Psique com delicadeza, pois compreendia seus sofrimentos e conhecia sua queda e, acariciando-a, lhe disse com voz apaziguadora:

— Boa menina, eu não passo de um simples camponês pastor de cabras, mas sou sábio graças à minha velhice e um filósofo graças à experiência. Na verdade — e acho que a conclusão a que cheguei e à qual os homens espertos dariam o nome de poder divinatório - está correta, quando deduzo que sofres por excesso de amor, dado os teus passos vacilantes, a palidez da pele do teu corpo, teus constantes soluços e teus olhos tristonhos. Portanto, ouve o meu conselho tão simples: não tentes matar-te outra vez, quer por este quer por outros meios. Deixa de te lamentar e desiste da morte. Dirige-te de preferência a Eros, o mais poderoso dos deuses, e conquista-o com tua delicada submissão, pois ele é um adolescente meigo e suave.

Depois de o deus-pastor ter dito isto, sem receber resposta, pois Psique limitou-se a inclinar-se diante da divindade salvadora, ela partiu. Após longa caminhada com passos lentos e pesados, depois de passar por diversos caminhos, chegou, sem saber como, a uma cidade dominada pelo marido de uma de suas irmãs. Já se iniciava o dia e, ao descobrir o fato, Psique pede que anunciem sua chegada à irmã; imediatamente foi conduzida até sua casa e depois dos costumeiros abraços e das mútuas saudações, Psique começou a contar o motivo da sua vinda, graças à insistência da irmã, da seguinte maneira:

— Lembras-te do plano que forjaste, no qual me aconselhaste a matar o monstro com um punhal de dois gumes antes que ele, que se fazia passar por meu marido, me engolisse ou esmagasse com seus braços envolventes? Mas, ao ver suas feições à luz do candeeiro, tive uma visão maravilhosa e divina, pois quem estava deitado ali era o próprio filho de Vênus - digo-te que era o próprio Cupido adormecido. No entanto, quando, deslumbrada pela visão de uma dádiva tão preciosa e completamente perturbada por variadas emoções, quis aproveitar para observá-lo mais de perto, é claro que por um acaso cruel, uma gota de óleo fervente do candeeiro pingou em seu ombro. Despertando em seguida devido à dor, e ao me ver empunhando o punhal e segurando a lâmpada, disse:

— Afasta-te imediatamente do meu tálamo e recebe o castigo pela tua má ação; eu, por minha vez, me unirei à tua irmã — e mencionou o nome pelo qual és conhecida -, farei um casamento legítimo e ela será minha mulher. Mal acabou de falar, ordenou ao Zéfiro que me transportasse para longe dos limites do castelo.

Assim que Psique acabou sua narrativa, sem mais delongas, alucinada de paixão e de criminosa inveja, a irmã inventou um pretexto para fugir ao marido - disse que seus pais estavam à morte - e viajou imediatamente para o rochedo fatídico; e, embora fosse diferente o vento que soprava, ela invocou Cupido e Zéfiro que a recebessem como sua senhora, lançando-se no abismo. Nem como cadáver chegou ao palácio, pois se despedaçou nas pontas da rocha e suas vísceras se espalharam pela encosta, pasto para as aves de rapina e os animais selvagens.

O castigo da segunda irmã também não tardou. Pois Psique viajou com passos incertos, atravessando vários caminhos até chegar à cidade onde ela morava. Usando da mesma artimanha, contou-lhe uma história semelhante à que contara à primeira das irmãs. Também a segunda apressou-se a ir ter ao rochedo, onde a aguardava sina idêntica.

Enquanto Psique peregrinava de cidade em cidade à procura de Cupido, este guardava o leito na casa de sua mãe, gemendo de dor pela queimadura. Vênus não se encontrava presente. Foi então que uma gaivota branca como a neve; dessas que voam nas cristas das ondas, desceu apressada até o fundo do mar onde a deusa se banhava e nadava despreocupadamente. A gaivota indiscreta contou-lhe tudo acerca do filho. Disse-lhe que Eros estava doente de paixão pela esposa e que não se viam possibilidades de cura para o seu mal. Esclareceu ainda que toda a família da deusa, já notória pela sua devassidão, que todos conheciam através dos rumores, sabia dos fatos e que estes já andavam na boca do povo. Dizia-se que, enquanto Eros fazia suas orgias na montanha, Vênus se afastara para o mar. Isso causara certa perda de dignidade, Vênus perdera a boa vontade do povo que se corrompeu. Tudo se tornara reles e vulgar, não havia mais casamentos, nem vínculos de amizade; o amor pelos filhos deixara de existir. Restara uma enorme falta de moral e a proliferação de uniões ilícitas e pecaminosas, dessas que dão asco. Tendo denunciado todos esses fatos aos ouvidos de Vênus, a alcoviteira ave ainda difamou-lhe o filho. Encolerizada, a deusa explodiu:

— Pois então meu belo filho já tem uma amante? Dize-me então o seu nome, já que me serves com tanta lealdade; dize-me o nome daquela que seduziu o frágil e imberbe rapaz. Acaso será alguma das ninfas ou das criadas do palácio, ou talvez uma das musas do coro, ou talvez seja uma das Graças que trabalha para mim?

A ave tagarela não se fez de rogada e disse:

— Não sei, senhora, creio que se trata de uma menina que, se não me engano, chama-se Psique, e o teu filho morre de paixão por ela.

Raivosa, Vênus grita com toda a força que pode:

— Psique! Se Eros de fato ama a minha imitação, essa mulher que usurpou o meu nome, então meu adorável filho me tomou por uma alcoviteira, pois fui eu mesma quem a mostrou a ele!

Ao dizer isso com voz áspera, ela retirou-se a toda pressa do mar e foi diretamente para seu palácio dourado; e logo que viu o filho doente tal como a ave lhe havia dito, gritou-lhe, assim que entrou pela porta:

— E assim — disse ela — é essa a harmonia que existe na minha família? Tua malcriação consiste em ter — o que é mais grave — desobedecido às ordens da tua mãe, aliás, da tua senhora, pisando-me aos pés, impondo-me uma rival — tu, fedelho de pouca idade — dormindo com ela, enchendo-a de abraços ainda imaturos, de tal sorte que talvez eu ainda tenha de aturá-la como nora? Julgas de fato, devasso e asqueroso sedutor, que somente tu podes ter um filho e que eu, por ser mais velha, não poderia conceber? Pois fica sabendo que gerarei um filho muito melhor do que tu. Aliás, para que sintas a humilhação, adotarei um dos meus escravos e lhe darei tuas asas, teu archote, tuas setas e tudo quanto carregas, mas para outro fim. Pois saibas que nada do que possuis pertence à propriedade do teu pai; é tudo meu! Tua extrema juventude te foi má conselheira e tantas vezes ataste, desrespeitosamente com teus dedos pontudos os teus pais, e à tua mãe — eu mesmo o confesso — quantas vezes me desnudaste e me possuíste! Agora desprezas tua mãe como se ela fosse uma pobre viúva e não tens medo nenhum de teu padrasto Marte, o mais forte de todos os guerreiros! Mas também, por que o temerias? Afinal, fostes tu que lhe arranjaste, para desgosto meu, as meninas que lhe serviram de concubinas! Mas já farei oom que te arrependas de teus jogos amorosos, e já sentirás como é amargo e pesado o jugo do teu casamento! E eu, que faço agora, ridicularizada por todos? Onde me esconderei? De que modo dominarei essa salamandra? Devo pedir ajuda à minha rival, a Sobriedade, a quem tantas vezes tenho ofendido devido à sua exuberância? Contudo, sinto calafrios de horror só ao pensar que terei de falar com essa tua mulher vulgar e coberta de imundície. Mas a vingança é um consolo e, venha ela de onde vier, não a desprezarei.

"Psique terá de apaixonar-se irremediavelmente por Eros, e por nenhum outro, para que açoite esse miserável da maneira mais amarga, lhe tire a aljava e as flechas, para que solte a corda do seu arco e tire o pavio do seu archote. Para que até mesmo reprima o seu corpo com os métodos mais violentos. Sentirei que terá sido feita justiça ao agravo que sofri no momento em que ela tosar o seu cabelo, esses mesmos cachos que tornei brilhantes de tanto alisá-los com as mãos, e quando lhe tiver cortado as asas, que tantas vezes borrifei com o néctar da fonte, quando o carregava ao colo!"

Tendo dito isto, precipitou-se porta afora, raivosa e azeda devido ao mau humor venusiano. Logo, entretanto, encontrou Demetér e Hera; como estas a vissem com os olhos inchados, perguntaram-lhe por que ela amortecia o encanto dos seus olhos brilhantes sob tão cerradas sobrancelhas. Mas Vênus respondeu:

— Bem a propósito me apareceis para atender os desejos do meu peito ardente, que por certo cumprireis. Procurai, por favor, com todo o empenho, aquela fugitiva, Psique, pois creio que já sabeis das belas lendas sobre a minha família, sem falar nos atos do meu filho que não vos devem ter sido ocultados.

Mas Demetér e Hera, que não desconheciam os acontecimentos, tentaram aplacar a fúria da deusa, tentando acalmá-la:

— O que fez teu filho de tão terrível, por que queres combater tão obstinadamente os seus prazeres e por que desejas aniquilar aquela que ele ama? Que crime será esse de sorrir para uma bela mulher? Ou acaso não sabes que ele pertence ao sexo masculino e que já é um adolescente, ou acaso esqueceste quantos anos ele tem? Ou achas que ainda é um menino, pelo fato de não aparentar a idade real? Mas tu, que és sua mãe e ainda por cima uma mulher compreensiva, continuarás a investigar sempre com curiosidade os jogos amorosos do rapaz, e desprezar seu ardor juvenil? Queres destruir seus amores e repreender o atrativo da beleza e do prazer das relações humanas, até do teu filho? Quem dentre os deuses, quem dentre os mortais suportará que semeies paixões entre os homens, se proíbes teus familiares de gozarem os encantos do amor e os excluis de todas as alegrias proporcionadas pela entrega da mulher, um pra-,cr que todos podem ter?

Elas lisonjeavam Eros por medo de suas flechas, defendendo-o apesar de ele não estar presente. Vênus, entretanto, irritada por ver que a injustiça que sofrera era tratada com pouco-caso, abandonou-as no meio do caminho e, virando-se para outro lado, retirou-se apressadamente para o mar.

Enquanto isso, Psique continuava sua triste peregrinação, buscando noite e dia pelo esposo. Quanto mais desespero sentia na alma, tanto mais sequioso de amor ficava também o encolerizado Eros, visto sentir falta do amor da esposa para aplacar-lhe os desejos; também não conseguia satisfazer-se com os favores obtidos de uma escrava.

Quando Psique avistou um templo no alto de uma montanha, disse para si mesma: "Se ao menos eu soubesse que é lá que se oculta o meu senhor!"

No mesmo instante, esquecido o cansaço por serem tão grandes a esperança e o desejo, dirigiu-se para lá com passos apressados. Depois de alcançar o cume, tendo obstinadamente escalado a encosta íngreme, entrou diretamente no templo divino. Viu espigas de trigo e de cevada empilhadas num monte e outras trançadas em forma de guirlandas. Também havia foices e todos os instrumentos necessários à colheita; contudo, estavam todos esparramados na mais completa desordem, tal como os ceifadores costumam abandoná-los quando chega o calor do verão. Psique arrumou tudo com muito cuidado, na crença compreensível de que não se deve negligenciar nenhum templo, pertença ele a qualquer deus, nem descuidar de seus rituais, mas que se deve pedir pela graça geral de todos eles.

Enquanto cuidava de organizar tudo, eis que Demetér se aproxima e, ao encontrá-la, clama em voz alta:

— É possível que sejas Psique tão digna de pena? Vênus procura enraivecida e encolerizada pela tua pista em todo o mundo, pedindo a todos os que te encontrarem para que recebas os mais cruéis castigos; ela exige vingança contra ti, usando para tal todos os poderes da sua condição de deusa. Tu, no entanto, te ocupas agora com as minhas coisas em vez de tentar salvar a tua pele?

Então Psique arremessa-se aos pés da deusa, chorando copiosamente, molhando até as sandálias de Demetér e varrendo o chão com os cabelos. Ela lhe pede, através das súplicas mais ardentes, que a deusa tenha piedade:

— Por tua mão direita que despende fertilidade, te suplico, pelos alegres rituais que acompanham as colheitas, pelos segredos ocultos nas arcas, pelo teu carro transportado pelas tuas serviçais serpentes, pelos sulcos das glebas da terra siciliana, pelo belo carro fúnebre de Hades, pela terra que nos sustenta, pela descida de Persé-fone às núpcias sombrias e pela ressurreição da filha para o reencontro luminoso, por tudo o mais que cobre de mistério a tua morada no Elêusis: ajuda a alma digna de pena desta Psique que te suplica com toda a humildade! Permite que me esconda por uns poucos dias no meio dos montes de espigas de trigo, até que se abrande a fúria da grande deusa devido à passagem do tempo e à grande distância, ou ao menos permite que eu recupere as forças do grande cansaço que me ocasionou a perda da paz.

Mas Demetér contradiz:

— Com tuas súplicas regadas a pranto sinto-me de fato comovida e gostaria de poder ajudar-te; mas não posso cair no desagrado dos meus parentes sanguíneos, com os quais tenho um antigo pacto de amizade. Portanto, sai logo do meu templo e fica contente pelo fato de eu não te reter e não te mandar seguir.

Vendo malograr suas esperanças e abatida por dupla tristeza, Psique retoma o caminho de volta e vê no vale, no sopé da montanha, no meio do bosque, um santuário construído com bastante arte; e como não se apresentasse outro caminho, mesmo que esse fosse duvidoso no que se referia à esperança, resolveu pedir a misericórdia do deus ao qual pertencia; aproximou-se assim do pórtico sagrado. Viu maravilhosos presentes e vestidos bordados com letras douradas pendurados nos ramos das árvores e nos postes, ofertas de agradecimento dedicadas à deusa à qual eram consagradas. Então Psique abraça de joelhos o altar ainda quente, depois de secar as lágrimas e suplica:

— Irmã e esposa do grande Júpiter: tu que és honrada em Samos somente por teu nascimento, por teu primeiro vagido e criação, e que és encontrada nos templos antigos; tu que visitas os felizes lugares da alta Cartago onde te veneram como a virgem que viaja para o céu num carro atrelado com leões; tu que velas pelos famosíssimos muros de Argos, às margens do Inaco onde te aclamam há muito como a rainha dos deuses e a esposa do trovão; tu, que todo o Oriente venera como a protetora dos casamentos e todo o Ocidente como a fornecedora da luz. Sejas, Hera, tu a salvadora da minha terrível queda e liberta-me daqueles sofrimentos e contínuos esforços causados pelo medo que sinto do perigo que me ameaça! Tanto quanto sei, costumas ajudar de boa vontade a evitar riscos durante a gravidez.

À suplicante, apresentou-se Hera com toda a dignidade de sua majestosa divindade e lhe disse:

— Como gostaria - disse ela -, dou-te a minha palavra, de adaptar minhas ordens às tuas súplicas! Mas contra a vontade de Vênus, minha sogra, a quem sempre amei como filha, me impede a vergonha de agir. Além disso, também estou de mãos atadas pelas leis que não permitem que escravas fugitivas estrangeiras sejam acolhidas contra a vontade de seus donos.

Desesperada com esse novo naufrágio de sua felicidade, e vendo malograr todos os seus esforços de descobrir o alado marido, Psique desiste de toda esperança de salvação e tenta resolver-se, travando consigo mesma o seguinte monólogo:

"Que outra ajuda podes esperar para a tua labuta, a quem mais podes recorrer, se nem sequer pudeste contar com a boa vontade das deusas? Presa nessa armadilha, para onde caminhar, e sob que teto ou em que escuridão queres te ocultar para fugires aos penetrantes olhares da grande Vênus? Por que, Psique, não te resolves e desiste de todo e qualquer resquício de esperança e te entregas voluntariamente à tua senhora, tentando mitigar-lhe o ódio, mesmo que com tua tardia submissão? Quem sabe não encontrarás no palácio da mãe aquele por quem tanto procuras?"

Assim, preparada para uma desastrosa rendição, mas mais preparada ainda para uma queda evidente, Psique pensa em como iniciar a provação que tem à frente.

Entrementes, pouco inclinada a usar os meios terrenos de investigação, Vênus parte para o céu. Ordena que lhe preparem a carruagem primorosamente polida e construída às pressas pelo ourives Hefestos, que sutilmente a deu de presente de casamento à deusa antes de sua primeira tentativa dentro da câmara nupcial, pressa que lhe custou um ferimento com a lima afiada, bem como certo prejuízo financeiro.

Das várias pombas presas nos aposentos da deusa, adiantaram-se quatro que, com passo ligeiro, enfiaram os pescoços pintados nas trelas preciosas que puxavam a carruagem; e, junto com a deusa, levantaram voo alegremente. Acompanhando a carruagem, os pardais voavam fazendo alegre estardalhaço e os demais pássaros, cantando docemente, anunciavam com sua melodiosa ressonância a chegada da deusa. As nuvens do céu se abriram para receber sua filha e o éter superior saudou a deusa com alegria. Diante das águias e dos gaviões rapaces que vieram saudá-la, a ruidosa comitiva alada da grande Vênus não demonstrou nenhum temor.

Vênus dirigiu-se diretamente à corte de Júpiter e exigiu, com pedidos gentis, a preciosa assistência de Mercúrio, o mensageiro dos deuses. O olhar azul de Júpiter, sem desviar-se do da deusa, concedeu-lhe a permissão. Em seguida, tentadora, Vênus empreende a descida do céu acompanhada por Mercúrio, ao qual encanta com as seguintes palavras:

— Tu bem sabes, arcádico irmão, que tua irmã Vênus nunca faz nada sem contar com a tua presença; e ninguém melhor do que tu conheces o fato de que há tempos venho buscando, encontrar a pista dessa escrava fugida. Nada mais resta então do que pedir-te para anunciares pelo mundo inteiro a sua fuga e prometeres a quem a encontrar primeiro uma valiosa recompensa. Faze com que minha ordem seja cumprida sem demora e espalha com exatidão os traços pelos quais ela pode ser reconhecida, para que ninguém ouse cometer o crime de acobertá-la alegando não saber quem ela é.

E, ao terminar de falar, entregou-lhe um papelucho, no qual estava anotado o nome de Psique e a descrição da sua aparência física. Tendo feito isso, voltou diretamente para casa.

No entanto, Mercúrio não se esqueceu da obediência que devia à deusa. Pois, percorrendo o mundo inteiro, cumpriu as ordens da deusa, divulgando o seguinte anúncio: "Se alguém souber do paradeiro ou puder fornecer alguma pista sobre a criada Psique, pertencente à rainha das deusas, Vênus, pode encontrar-se com o mensageiro dos deuses, Mercúrio, atrás da Pirâmide pois, cumprindo ordens da própria deusa, será recebido por sete adoráveis beldades e por um belo rapaz, doces como mel ao toque da língua.

A promessa contida no anúncio de Mercúrio despertou a cobiça de todos os mortais, que se entusiasmaram diante da perspectiva de receber esse prêmio.

Esse anúncio apressou a deliberação de Psique, que dirigiu-se com pressa para o palácio da deusa. Já estava bastante próxima do mesmo quando foi avistada por uma das escravas do palácio, cujo nome era Hábito.

Tão logo avistou Psique, a serva pôs-se a gritar, tão alto quanto podia:

— Afinal, criada imprestável, te lembraste de que tens uma senhora? Ou, segundo teus maus costumes, fazes de conta que nada sabes a respeito do trabalho que tivemos para te encontrar? Sorte tua que ficaste presa entre as grades do Orco, pois assim poderás receber logo o castigo pela tua teimosia!

E, agarrando-a pelos cabelos com brutalidade, arrastou-a até sua Senhora, embora Psique não lhe oferecesse resistência.

Assim que Vênus viu Psique, suas feições contorceram-se numa gargalhada gutural, igual às que os dementes costumam soltar e, sacudindo-a pela cabeça e puxando-lhe as orelhas, falou:

— Afinal me dás a honra de vires cumprimentar tua sogra? Ou vieste por causa do teu marido, que está com a saúde abalada devido à ferida que lhe causaste? Mas não te preocupes, pois já te darei uma recepção digna de uma nora tão boa!

E chamou:

— Onde estão minhas criadas, Inquietação e Tristeza? Depois de fazê-las entrar, entregou-lhes Psique para que estas a torturassem.

As servas, seguindo as ordens da senhora, bateram em Psique com os açoites e a torturaram com todos os demais instrumentos disponíveis de tortura; em seguida, conduziram-na de volta à presença da deusa. Então Vênus disse com um sorriso feroz nos lábios:

— Vede só, com o encanto da sua enorme barriga ela quer despertar nossa compaixão pois, através do divino rebento que traz no ventre, conta em transformar-me em avó. Afortunada sou, de fato, se for chamada de avó na flor dos meus anos e mais ainda se chamar o filho de uma criada de neto de Vênus. No entanto, estou sendo parva ao dizer filho; pois esse casamento não é legítimo e, além disso, nenhum casamento pode ser considerado consumado sem a anuência do pai. E assim, ele nascerá como um bastardo, isso caso eu venha a consentir no nascimento.

Dizendo isso, lançou-se sobre Psique, rasgando-lhe e tirando-me as vestes do corpo, arrancando-lhe ós cabelos. Espancou-a da cabeça aos pés. Em seguida, fez um grande e único monte misturando uma grande quantidade de trigo, cevada, milho, grão-de-bico, sementes de papoula, lentilhas e favas, dizendo a Psique:

— Parece-me que tu, criada inútil, só podes conquistar teu amante na medida em que trabalhares arduamente, e de nenhum outro modo. Além disso, com esse trabalho também porei em risco o fruto do teu ventre. Separa esse monte por espécies e depois que tiveres feito isso de forma correta, mostra-me a tarefa cumprida até a noite.

Como tivesse despejado grande quantidade de grãos, Vênus foi entregar-se aos regalos de uma festa amorosa.

Psique, vendo que a tarefa era inexequível, nem mesmo tentou executá-la, permanecendo imóvel, em silêncio.

Uma formiguinha que passava por ali, esse animalzinho tão incrivelmente trabalhador, avaliou a impossibilidade da execução de tarefa tão enorme, e sentiu pena da amante do deus do amor. E, amaldiçoando a perversidade da sogra, convocou um batalhão de formigas para que estas viessem em socorro de Psique:

— Tende piedade, ó criaturinhas ágeis da terra, mãe de todos, tende piedade da esposa do Amor, dessa adorável menina!

Trabalhando sem cessar, com a maior das pressas e reunindo esforços conjuntos, as formiguinhas separaram espécie por espécie, grão por grão; depois de arrumarem tudo em montes separados, sumiram rapidamente de vista.

No início da noite, Vênus voltou da festa, recendendo a vinho e perfumada a bálsamo, com todo o corpo emoldurado por rosas brilhantes; quando viu o sucesso e o esforço do trabalho maravilhoso, disse com ódio:



— Não se trata de trabalho teu, sua inútil, nem o esforço foi feito pelas tuas mãos; quem fez tudo foi ele, ao qual causaste uma desgraça e que ainda sofrerá mais por tua causa! - E, depois de atirar-lhe um pedaço de pão embolorado, retirou-se para seus aposentos. Enquanto isso, Eros estava trancado sozinho numa ala retirada do castelo, em parte para que sua ferida não se agravasse por alguma negligência intencional, em parte para que não se encontrasse com quem tanto desejava. De sorte que os dois amantes tiveram de passar isolados debaixo do mesmo teto uma noite pavorosa.

Mal a aurora despontou, Vênus chamou Psique e lhe disse o seguinte:

— Vês aquele bosque que acompanha as margens do rio, repleto de imensos sorvedouros provenientes de quedas de água das montanhas próximas? Por ah vagueiam ovelhas ferozes com os dorsos cobertos de flocos de lã de ouro. Creio que me trarás, custe o que te custar, um pouco dessa lã assim que a encontrares.

Psique acatou a ordem sem revidar, não para cumprir a tarefa, mas para precipitar-se nas águas impetuosas do rio, jogando-se do rochedo para obter paz de tanto sofrimento. Contudo, do rio, lhe diz um simples caniço verde, por inspiração divina, um daqueles caniços que espalham pelo ar doces melodias à mãe da natureza:

— Psique, não perturbes minhas águas sagradas com tua morte miserável, nem tentes aproximar-te das ovelhas enquanto o sol estiver a pino, visto que o calor as deixa tomadas de terrível furor, o que as faz atacar com os chifres e morder com mordidelas venenosas e letais qualquer mortal que as venha perturbar. Mas quando o calor do meio do dia tiver se aplacado, e o rebanho descansar devido ao vento fresco proveniente do rio, podes ir até o plátano e ocultar-te embaixo dele, pois ele é alto e bebe junto comigo da água do mesmo rio. E quando o furor das ovelhas já tiver se aplacado e elas estiverem mais descansadas, basta sacudires as árvores do bosque e colher os flocos de lã dourada que ficam presos por toda a parte dos seus galhos curvados.

Foi assim que o caniço salvou a vida de Psique, ensinando-a como agir através desse ardil. E esta, não se arrependeu de dar-lhe ouvidos, não hesitando em cumprir e em seguir cuidadosamente à risca as instruções; e pôde voltar com o regaço cheio de flocos de lã de ouro para junto de Vênus. A deusa não se comoveu com o êxito de mais essa tarefa e, com as sobrancelhas cerradas, rindo cinicamente, disse:

— Sei muito bem quem foi o mestre dessa ação também! Mas agora vou tentar com empenho descobrir se tens de fato grande coragem e se és mesmo esperta. Vês o rochedo escorregadio da alta montanha? De lá rolam em cascatas as águas escuras que alimentam no vale próximo os dois rios: o Cocito e o Estige. Lá chegando, sobe ao rochedo e enche a jarra com as águas espumantes da fonte mais alta.

Dizendo isso, Vênus deu a Psique um recipiente de puro cristal liso e, além disso, ainda a insultou o quanto pôde.

Psique, contudo, apressando o passo, procurou chegar logo ao rochedo, certa de conseguir pôr fim à sua infeliz vida. Mas mal chegou ao rochedo ficou como que petrificada diante da dificuldade da tarefa. O rochedo íngreme era alto demais e terrivelmente perigoso, pois era escorregadio. As águas jorravam bem no meio de uma cavidade arremessando-se no abismo, correndo através de um canal muito estreito e encoberto pela vegetação que ia dar no vale. Do lado esquerdo e do lado direito, de grotas selvagens safam os pescoços compridos de cobras venenosas, cuja missão era montar guarda noite e dia, com a atenta vigilância de suas pupilas brilhantes. E até as próprias águas se protegiam, pois eram dotadas de vozes que diziam: "Sai daqui!" E, "O que fazes? Presta atenção!" e ainda: "Que pensas fazer? Acautela-te!" E: "Foge!" Mais ainda: "Tu morrerás." Assim gritavam as águas turbulentas. Petrificada de horror, embora fisicamente presente, Psique estava com os sentidos amortecidos; dada a imensidão dos perigos, ficou inteiramente inerte, sem sequer poder chorar, o que seria o seu último consolo. Mas aos olhos da Criação não escapou o tormento dessa alma inocente. Pois a águia real, a predileta de Júpiter, resolveu socorrê-la por ter-se lembrado da inestimável ajuda que tivera de Eros por ocasião do rapto de Ganimedes. Este foi levado e entregue a Júpiter como presente sob a orientação de Eros. Homenageando a divindade do deus, a águia resolveu ajudar a esposa caída em desgraça, abandonando os ares frescos da abóbada celeste a fim de vir em seu socorro. Voando diretamente em direção da menina, disse-lhe:

— Achas que serás capaz, tu que és inexperiente e não tens prática de fazer essas coisas, de tirar uma só gota dessa água, quanto mais de chegares até a fonte, empreitada não menos perigosa? Não ficaste sabendo, por ouvir falar, que mesmo os deuses temem as águas do Estige, e que nem o próprio Júpiter escapa a esse medo? Não sabes também que, assim como os mortais costumam jurar pelos deuses, estes fazem seus juramentos invocando as águas do Estige? Mas agora entrega-me a tua jarra.

Com a jarra bem segura entre as garras, a águia apressou-se. Balançando as asas, passou rápida por entre os dentes e as línguas trifurcadas das serpentes. Esticando as asas para a direita e para a esquerda como se fossem remos, conseguiu apanhar a água. Estas estiveram de acordo e cuidaram para que a águia nada sofresse e saísse ilesa dali, visto que esta lhes disse que cumpria ordens de Vênus e que estava a seu serviço. Isso facilitou-lhe a tarefa. Assim foi que Psique pôde voltar com a jarra que recebeu alegremente da águia, entregando-a a Vênus.

Também dessa vez o temperamento raivoso da deusa não se aplacou. Pois ela lhe deu outra tarefa ainda mais fatal, com um sorriso sinistro:

— Parece que tu és uma grande e poderosa bruxa, visto que cumpriste minhas instruções com tanta facilidade! Mas agora, minha preciosidade, é preciso que me tragas mais uma coisa. Pega esta caixinha!

E a deusa lhe entregou a caixinha ordenando-lhe:

— Desce até o inferno e vai até o palácio do Orco. Então dize a Perséfone, ao lhe entregar esta caixinha:

— Vênus pede-te que mandes um pouquinho da beleza imortal que é tua, um tanto que baste para um único dia. Pois a beleza de que dispunha, ela gastou, consumindo-a nos cuidados com o filho doente. Mas não voltes tarde demais, pois preciso dessa pomada para ir à reunião dos imortais ainda hoje.

Foi então que Psique compreendeu que seu fim estava próximo. Não havia mais enigmas, e enviavam-na sem mais disfarces para a própria morte. Como não? Pois estavam mandando que fosse voluntariamente ao Tártaro e que se misturasse às almas dos mortos. Sem mais delongas, ela dirigiu-se a uma grande torre muito alta, a fim de precipitar-se de lá de cima: este, pensou, seria o atalho mais curto para chegar mais depressa ao fundo do Hades. Mas a torre, de repente, resolveu falar, dizendo:

— Por que, pobre infeliz, queres te matar constantemente? E por que recuas ante essa prova derradeira e diante desse novo perigo? Quando o espirito se tiver separado do teu corpo definitivamente, é claro que chegarás ao mundo dos mortos, mas de lá não poderás nunca mais voltar. Ouve-me, por favor! Não muito longe daqui, na nobre Acaia, existe a cidade de Lacônia; nas proximidades fica o cabo Tênaro, oculto nessa região na qual não existem caminhos. Ali fica a entrada do Hades e através de portões sonolentos verás o caminho sem caminho ao qual terás de te entregar, mal passes pela porta. E logo chegarás diretamente ao Palácio do Orco. Contudo, não deves te aventurar nessas regiões de trevas sem levar em cada mão dois pedaços de bolo adoçado com hidromel e na boca duas moedas. Quando já tiveres percorrido parte do caminho que traz a morte, verás um asno coxo que puxa uma carrocinha de lenha conduzida por um condutor também coxo. Este te pedirá para pegar algumas lascas de madeira caída ao chão; mas prossegue teu caminho sem lhe responderes nada. Logo chegarás então ao rio da morte. Serás abordada por Caronte, que te proporá a travessia do rio infernal em sua barca, mediante o pagamento da passagem. Portanto, já vês que também junto aos mortos existe a cobiça, e nem Caronte, nem o pai Plutão, que é um deus tão poderoso, fazem coisa alguma de graça; o pobre do agonizante precisa ter uma moeda e, se não tiver dinheiro à mão, ninguém permite que ele morra. A esse velho asqueroso darás como pagamento da passagem uma das moedas que trazes na boca, mas faze com que ele mesmo a pegue. Mais uma coisa: quando estiveres em meio à travessia dos rios infernais, um velho erguerá do fundo das águas as mãos podres e implorará para que o puxes para bordo; não te deixes levar, porém, pela tua compaixão ilícita. Do outro lado do rio, depois que tiveres andado um bom trecho de caminho, encontrarás umas velhas fiandeiras que te pedirão ajuda, mas não deves atendê-las pois não tens permissão para tocá-las. Tudo isso te aguarda e muito mais, e tudo são instruções de Vênus para que deixes cair um dos bolos que levas nas mãos. Não aches que a perda dos bolos não seja importante! Pois, se perderes um só não mais verás a luz. Pois um enorme cão com uma cabeça bastante larga e grande, monstruoso e horripilante, late com toda a força dos pulmões para os mortos: ele não lhes pode fazer mal e monta guarda, tentando assustá-los inutilmente, diante da casa vazia de Plutão, limiar do sombrio átrio de Perséfone. Com o pedacinho de bolo, passarás facilmente por ele e chegarás diretamente até Perséfone, que te receberá com toda a gentileza e te convidará a sentar e a participar de um lauto banquete. Mas deves sentar-te no chão e pedir apenas um pedaço de pão preto, que aceitarás. Dize em seguida por que a procuraste, e depois que receberes o que ela te oferecer, compra a tua passagem de saída com o que restou do bolo, entregando-o ao cão. Dá ao cobiçoso barqueiro a moeda que guardaste e, depois que tiveres atravessado o rio regressando ao lugar de origem, voltarás acompanhada pelo coro dos astros. Mas em nenhuma hipótese deves abrir nem olhar para o conteúdo misterioso da beleza imortal contido na caixinha.

Desta forma, a torre dá a Psique o presente da sua clarividência. Psique, sem demora, põe-se a caminho do Tênaro, e depois que as moedas e os pedaços de bolo foram corretamente aceitos, ela seguiu para o reino dos mortos. Depois de passar pelo burriqueiro coxo sem nada dizer e depois de ter pago a passagem para embarcar e chegar à outra margem, não ligou para o morto que boiava nas águas do rio, não atendeu às súplicas das fiandeiras e, logo depois, aplacou a ira do cão com o bolo que trazia numa das mãos. Conseguiu assim entrar na casa de Perséfone. Sem aceitar o assento macio nem a lauta refeição, sentou-se no chão comendo seu pedaço de pão. Disse a Perséfone o que Vênus a encarregara de dizer, recebendo em seguida a caixinha cheia e fechada. Depois de tornar a desarmar o cão com o segundo pedaço de bolo e de dar a última moeda ao barqueiro, ficou bem feliz de voltar pelo caminho que já percorrera. No retorno do mundo das trevas, e já em plena luz, com pressa de terminar logo a execução de sua tarefa, seu espírito foi, no entanto, assaltado por grande curiosidade.

E então disse para si mesma: "Sou uma tola mensageira que carrega a beleza imortal e nem sequer peguei um pouquinho para mim a fim de conquistar meu lindíssimo amante." E ao dizer isso, abriu a caixinha. Mas nada do que era esperado esta continha, nem sequer a beleza imortal, mas o sono estfgio espalhando-se por toda a volta; uma vez liberto, quando ela abriu a tampa da caixinha, ele se apoderou como uma névoa de todos os membros de Psique, prostrando-a no meio do caminho, imóvel como se estivesse morta.

Contudo, Eros, já curado do ferimento produzido que cicatrizara, e louco de saudades da sua Psique, escapuliu pela janela do quarto que lhe servia de cárcere e, num vôo rápido, graças ao longo descanso a que submetera suas asas, aproximou-se nervoso da sua Psique. Cuidadosamente, colocou o sono letárgico de volta à caixinha e despertou a adormecida esposa com um leve toque da ponta de uma de suas flechas.

— Vê - repreendeu-a ele - aonde tua curiosidade quase te levou? No entanto, cumpre a missão de que minha mãe te incumbiu com toda a tranquilidade e deixa o resto por minha conta.

Com essas palavras, entregou a Psique a caixinha, presente de Perséfone para Vênus, e levantou vôo com um movimento ágil de suas asas.

Eros, tão apaixonado como nunca pela sua Psique, teme contudo a ira materna; portanto, dirige-se imediatamente ao velho "barril-zinho de vinho", vai diretamente à abertura do céu e pede, expondo a causa, que o grande Júpiter seja o seu advogado. Este belisca a bochecha de Eros e, depois de beijá-la, lhe diz:

— Tu, Senhor Filho, que nunca me homenageaste com a honra que todos os deuses me conferem, mas que feriste bastante este peito no qual são organizadas as leis dos elementos e a revolução dos astros; tu que, através dos inúmeros casos ilícitos de amor mundano, me desrespeitaste e atentaste contra as leis, até mesmo contra as leis julianas relativas ao adultério, na medida em que transformaste porcamente minhas alegres feições em cobras, em fogo, em animais selvagens, em pássaros e rebanhos de pastagens; mas apesar de tudo isso, levando em conta minha ternura e pelo fato de ter-te criado com as próprias mãos, te concederei tudo o que pediste; mas quando uma menina mortal se destacar pela beleza, terás de me prestar um favor para recompensar o que agora te dou.

Tendo falado, Júpiter ordenou que Mercúrio convocasse todos os deuses para uma assembleia: quem ousasse desobedecer, ficando longe do círculo celestial, seria castigado, tendo de pagar dez mil moedas. Com medo desse castigo, logo o local da reunião ficou repleto de deuses e, sentado no seu trono, Júpiter fez a seguinte exposição:

— Deuses, vós que tendes os nomes inscritos nos arquivos das musas, conheceis de fato este jovem que eu mesmo eduquei. Julgo que convém refrear para sempre as suas desregradas paixões. Basta de ouvir falar de seus escândalos diários no mundo inteiro a respeito de seus adultérios e devassidões. É chegado o momento de tirar-lhe todas as oportunidades de praticar a luxúria e aprisionar-lhe o temperamento lascivo nos laços do himeneu. Ele escolheu uma donzela, e roubou-lhe a virgindade. Que ele fique com ela, e ela o conserve para sempre, que ele tenha Psique em seus braços por toda a eternidade.

E virando o rosto para Vênus, disse:

— E quanto a ti, filha, não te perturbes com nada e não temas este casamento celebrado entre um deus e uma mortal. Farei com que tenham um casamento legítimo e de acordo com o direito civil do Olimpo. - E, imediatamente, ordenou que Mercúrio raptasse Psique da terra e a trouxesse para o céu. Indo-lhe ao encontro com uma taça de ambrosia, a bebida dos imortais, disse-lhe:

— Bebe, Psique, e sê imortal. Eros jamais abandonará os teus braços, porquanto vosso casamento será perfeito.

Em seguida foi servido um esplêndido banquete de núpcias. No trono mais elevado, ficaram Eros com sua esposa Psique no colo. E Júpiter com a sua Hera e, depois, segundo a ordem hierárquica, os demais deuses. Muita ambrosia foi servida pelo jovem camponês Baco, deus do vinho. A comida foi preparada por Hefesto; as ninfas cobriram tudo com rosas e outras flores, enquanto as Graças espargiram bálsamos perfumados e as Musas fizeram ouvir seus cantos. Apolo cantou acompanhado à cítara, Vênus dançou maravilhosa e ritmadamente ao som da música. A cena toda parecia ter sido organizada - as Musas cantavam em coro, ou sopravam as flautas; um sátiro e um Pã tocavam suas flautas mágicas.

Dessa forma Eros casou-se com Psique segundo o ritual do Olimpo. No momento apropriado, nasceu-lhes uma filha, Volúpia.

Comentários

  1. Fazia tempo que eu comparecia ao teu blogue, mas foi com grande alegria que constatei o quanto tuas reflexões merecem ser lidas. Aos lê-las me dei conta que ainda existe inteligência na bloguesfera, Parabéns, JAIR.

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  2. Desenvolvimento de um mito com extrema maestria. E agradável de ler.
    Parabéns

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